Fã de cantar errado, Miguel ria sem parar das mudanças de letra que ele mesmo fazia. Um dia inventou a regra do “pelado” e, ao final de cada frase, encaixava-se o adjetivo que faria os amigos rirem. “Se o amor chamar, eu vou… (pelado!)”: passavam horas nessa brincadeira. Era um sábado chuvoso, com futebol na tevê e copos de cerveja meio quente pela casa. Prometeram, depois disso, que nem os dias de chuvas intermináveis do inverno baiano fariam diferença na alegria dos amigos.
Miguel honrou a promessa até morrer, duas semanas depois, de infarto fulminante. Ironicamente, chovia.
Um sábado antes, na padaria, cumprimentou o padeiro com um aperto de mão, elogiou a fornada fresca e fez o pedido de sempre: um sonho recheado. Não importava o sabor do recheio, mas a cremosidade com que se lambuzava. Saiu de lá com uma mancha branca de creme no bigode escuro, desejando um bom descanso pra quem trabalhava.
Passou na casa do primo preferido e tomou um café enquanto trocava a torneira da cozinha, uma daquelas tarefas de casa que ficam pelo caminho.
“Resolvido!”, disse, satisfeito. Ele era essa pessoa: resolutivo e aceso.
Contando do cachorro que queria adotar, a empolgação tomava conta da sua voz. Narrava, de forma histérica, planos pra um futuro que, em tese, era próximo: acampar, fazer trilhas no meio do mato e corridas na praia. Ele queria ser o melhor amigo de um cão que, possivelmente, já tinha estado muito sozinho. Começou um bolão pra decidir o nome e adiantou-se nos preparativos: comprou ração, cama, brinquedos. O cachorro, que não teve tempo de chegar, não comeu na tigela, não deitou na caminha, não brincou com os apetrechos.
No dia em que o coração desacertou, Miguel tinha voltado da corrida e deitou por alguns instantes no sofá da sala. Mandou mensagens pra contar o provável nome do seu cachorro, riu sozinho da piada e comeu o último sonho. Faleceu assim, rindo e de bigode manchado de creme.
Miguel não tinha esposa, nem filhos. Deixa enlutados seus pais, parentes e amigos. Nesse momento, todos decidem quem adotará o cachorro que ele escolheu.
Esse projeto literário se autodestruirá depois de oito histórias. Todos os protagonistas já faleceram e somente um deles eu conheci. Tem muito de ficção, muito de realidade e um quê bastante concreto da generosidade dos amigos que me contaram suas narrativas. Menos sobre morte, mais sobre a vida que morou na fresta de cada membrana deles.