Olga quase nunca acordava a tempo de ficar pronta para sair de casa. Levava, então, o kit de maquiagem no carro e se arrumava no estacionamento. Como tinha capricho mas não tinha jeito, um cantinho do olho sempre ficava borrado. Nessas horas a técnica de acabamento era lamber a ponta do dedo mindinho pra limpar. Limpava, passava o batom rosa e saía viver o mundo. Como a saliva não é o melhor demaquilante, Olga vivia com um risquinho preto embaixo dos olhos, charmoso demais pra ser extinto.
Pra falar a verdade, desde cedo seus olhos eram pontos de atenção, risos e paixões. Dois grandes seres sutis, levemente próximos, parecendo um gatinho siamês. Tinham a beleza de algum ponto de estranhamento: algo de delicado, algo de descontorno. Suas mãos eram pequenas, de dedos finos e ágeis, sedentos por criar uma linha imaginária daqui até o Peru. Ela adorava o Peru. Viajara pra lá muitas vezes e dizia que seus órgãos verbalizavam alto essa paixão. Um corpo falante, esse de Olga.
Suas mãos papeavam tagarelas também à distância: se ia visitar uma amiga e “perdia a viagem”, deixava uma sacola com chocolates presa à maçaneta da porta, amarrada num laço imaginário que ligava as amizades. Ao chegar em casa, a amiga tinha o gosto doce de saber que Olga existia.
Mas, como a vida tem seus próprios planos, aos 34 anos Olga descobriu um câncer de útero e passou a receber presentes em casa. As visitas ficaram inviáveis, os borrões de maquiagem foram sutilmente diminuindo… até que nenhum demaquilante tivesse forças para recuperá-la. Com os fios imaginários roídos pelo avanço da doença real, Olga se foi.
No dia de sua morte, as maçanetas das lojas de chocolate da cidade também se encheram de flores. Olga morava com a mãe, não tinha marido nem filhos. Ficam, agora, a progenitora e os irmãos, os presentes peruanos e os doces pela casa.
*nota da escritora: se você é mulher, faça seus exames de colo de útero regularmente, com toda a dedicação que ele merece.
Lindo, Keth ❤️